

Foi um daqueles lances distintos e peculiares que ilustram porque o futebol nos fascina — e nos conta tanto sobre o comportamento humano. Aconteceu no último domingo no Maracanã. Eram 27 minutos do segundo tempo. Jogavam Fluminense e Vitória — e o Flu vencia por 1 a 0 quando o colombiano John Arias, talvez o melhor jogador no Brasil atualmente, recebeu livre pela esquerda.
Em vez de partir na direção do gol, Arias freou e resolveu girar. Em girando permitiu o assédio de Lucas Halter, zagueiro do Vitória. Halter chegou perto, plantou a mão no peito do colombiano e a fechou — iniciando um puxão. A camisa foi esticada por um décimo de segundo.
Assim que sentiu o golpe, Arias caiu. Quase simultaneamente Halter soltou a camisa.
Ali começou o infinito debate.
Para o torcedor tricolor — a mera existência da discussão soou como ofensa. Há um puxão — e puxar é falta. E ainda que leve, o puxão desequilibrou Arias. Sejamos sinceros: qualquer torcedor de qualquer time usaria o mesmo argumento. E ficaria indignado como ficou Renato Gaúcho. Mas… contudo, porém, entretanto e todavia… existe o tal do outro lado. Arias, mais do que cair, desmanchou — e isso deixou o juiz Matheus Candançan na dúvida. E fez o VAR hesitar também.
— Há um agarrão… mas não tem impacto — foi o que o juiz relatou — e o VAR subscreveu.
Parecia um lance simples. Na pelada … puxão, agarrão ou sinônimo afim — é falta. Ou deveria ser. Mas nas sutilezas do microscópio arbitral, como anota o filósofo PC Oliveira, não existem dois lances iguais. Não existem dois puxões idênticos. Cada puxão tem seu DNA próprio e inimitável.
Nesse caso… para usar uma analogia criminal, foi como se Halter tivesse o dedo no gatilho e começasse a puxá-lo, Arias caísse ao perceber que seria baleado… e as imagens fossem incapazes de nos dizer quando a bala deixou o tambor.
Em outras palavras: Arias caiu por causa do puxão… ou caiu porque sentiu que estava começando a ser puxado?
A regra 12 diz textualmente que falta deve ser marcada em caso de agarrão. Mas orientações posteriores versam sobre intensidade. Na prática, juízes toleram puxadinhas e puxões pouco ostensivos. Esse foi ostensivo e sutil ao mesmo tempo — por mais paradoxal que isso soe.
Se há dúvida, há campo para advogados de toda sorte. E o que não falta no Brasil é habilidade argumentativa. Não vimos outro dia o causídico de Dudu escrevendo num documento, sem óleo de peroba facial, que VTNC era uma sigla para “Vim trabalhar no Cruzeiro”?
Torcemos sempre, vestimos nossos argumentos de acordo com nossa paixão e nem sempre percebemos. No ecossistema fragmentado das redes, cada torcida cria uma conspiração de bolso por rodada para alimentar o apetite de sua bolha narrativa.
O ex-presidente da Fifa e ex-nome de estádio e tricolor João Havelange era contra o VAR — porque acreditava que ele acabaria com a saudável polêmica do botequim. Aconteceu o contrário. O VAR aumentou exponencialmente o debate — e, a cada semana, evidencia ainda mais nossa irracionalidade — essa que passamos a vida tentando muito disfarçar.
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