
“Meu nome é Ana Luiza Rigue, sou estudante, tenho 21 anos, e há cerca de três anos fiz uma promessa: correr uma meia maratona para me conectar com a minha mãe, Luciana Gambarato, de 52 anos, que é publicitária. Eu nunca havia corrido, nem 5k. Mas estava disposta a encarar 21k depois que minha mãe sofreu um AVC. Ela estava internada, em situação delicada. Ficou 57 dias na UTI e tive medo de que ela não voltasse mais para casa.
A minha mãe correu a vida inteira, era o seu esporte. Corria por hobby e treinava em uma assessoria. Sempre foi apaixonada. E, claro, tentava me puxar também. Nunca deu muito certo.
Cheguei a acompanhá-la algumas vezes em treinos, mas não me empolgava. A gente sempre acha que vai ter amanhã, semana que vem. Que outra oportunidade surgirá. A verdade é que nunca surgiu. A gente nunca correu uma prova juntas.
Em 11 de março de 2022, uma sexta-feira, ela sofreu um AVC. Na semana anterior, tinha me ligado todos os dias pedindo para eu ir para Americana, onde minha família mora. Eu havia me mudado há um mês para São Paulo para estudar Administração no Insper, o Instituto de Ensino e Pesquisa. E não podia visitá-la naquela ocasião, tinha compromissos. Mas planejei voltar para casa de surpresa.

Esquematizei tudo, peguei a estrada sexta-feira de manhã. Tinha até feito uma tatuagem em homenagem aos meus pais, com a data de nascimento de ambos, e estava louca para mostrar. E, enquanto rolava o caos em Americana, eu estava na estrada, sem saber de nada.
Quando cheguei, liguei para meu pai e descobri o que aconteceu. Fui direto para o hospital e ao chegar lá, quando meu pai me viu, ele começou a chorar. Nunca mais o vi chorar.
Até tentei trancar a faculdade, mas não deu. Não teve jeito, voltei para São Paulo e isso foi angustiante. Eu estava longe fisicamente deles. E naquela situação, senti que precisava me aproximar da minha mãe de alguma forma.
Queria algo que me deixasse sentir que eu estava ali ao lado, no Hospital São Francisco. Foi quando tive a ideia de correr. A corrida sempre foi muito especial para ela e me propus a fazer com que fosse especial para mim também. Na minha cabeça, deste jeito, eu estaria por perto.
E foi isso que aconteceu. Quando eu corria, lembrava das vezes em que eu havia a acompanhado nos treinos e transportava essas imagens para o presente. Eu a tinha no meu coração e nos meus pensamentos. Foi assim que eu comecei a correr, meio forçada, meio sem gostar.
Antes dela sair da UTI eu fiz uma promessa. Entrei no quarto dela, minha mãe estava muito debilitada, tinha acabado de operar, estava entubada e em coma. Me ajoelhei, tinha o terço da minha avó nas mãos. O quarto estava escuro e eu comecei a rezar muito e a chorar muito. Eu falei para ela: “Mãe, se você sair viva da UTI eu vou correr a Meia Maratona do Rio para você”. Essa era a prova preferida dela.
Se ela tinha força para aguentar a UTI, eu teria para a corrida. O que são 21k? E fui me preparar para a prova. Essa preparação foi que me empurrou a seguir com a minha vida. Longe e perto dela. Ligava para o meu pai e contava o quanto os treinos estavam difíceis, mas que havia pensado na mamãe e encarava tudo. Todos os dias era a mesma coisa. Era difícil, eu queria desistir mas eu pensava nela.

A corrida acabou transformando a minha vida. Me transformou em uma filha melhor, uma irmã melhor. Hoje o João Pedro e o Marco Antônio têm 16 e 14 anos. Mas eram menorzinhos e sentiam muito a falta dela. Eu tive de assumir o papel da minha mãe porque eles precisavam mais do que eu.
Eu não sei mas acho que foi instinto de mulher. Tenho a impressão que toda mulher nasce com chip de mãe na cabeça. À época, eu achava que era um pouco o termômetro da família. Quando eu estava bem, todos ficavam bem.
Meu pai tomou a frente de tudo, mas eu estava sempre a seu lado. Para o Nino, não foi nada fácil. Ele teve de segurar as pontas da família toda. Saiu de “nunca ter lavado uma louça e pisado no mercado para virar o pai e a mãe da casa”. Teve de aprender o básico, a montar a lancheira dos filhos. Meus irmãos jogam tênis e o pessoal brinca que o Nino é a mãe mais organizada do torneio.
Todos ficamos mais amorosos. A gente era uma família que não falava “eu te amo”… A gente se ama muito mas esse não era um costume. E hoje eu falo 800 vezes por dia para minha mãe, meu pai e meus irmãos. Um segura a barra um do outro, ninguém solta a mão de ninguém. A dor nos uniu muito. E isso até hoje.
Claro, que fico triste de pensar que não tive a oportunidade de correr ao lado dela. Pelo menos até agora. Mas esse vácuo virou nosso combustível. A gente ainda vai correr junto, tenho certeza.
Minha mãe tem limitações. O AVC paralisou o lado direito do corpo dela, os músculos atrofiaram. Ela consegue andar devagar, com a perna arrastada. Até que se vira bem. Mas a fala foi o que mais afetou. Brinco que faz três anos que jogamos Imagem e Ação. Ela vai apontando para as coisas e se faz entender.
Mas, minha mãe não é aquela pessoa que aceita a sua condição, que se conformou. Ela tem vontade de melhorar. Faz fisioterapia, fonoaudióloga, vai na academia. Ela está sempre lutando, o tempo todo.
No ano passado eu corri a tal Meia Maratona do Rio. Foi ótimo, a prova da minha vida. Corri do início ao fim com sorriso no rosto. Mas não foi fácil, tá? Quando cheguei no quilômetro 19 senti muita dor, estava passando mal. Só fechei os olhos e pensei nela. Faltavam apenas 2k. E fui, parecia que estava anestesiada porque cruzei a linha de chegada feliz. Tenho até o vídeo e na legenda coloquei: “Você sempre falou que ia no meu ritmo e hoje eu fui no seu”.
Mas, o momento mais emocionante da minha vida foi quando cruzei a linha de chegada com ela. Foi em uma prova de 10k, em São Paulo. Lembro que estava correndo e uma amiga e o namorado, que é videomaker, estavam na linha de chegada. Do nada me deu essa ideia. Mandei mensagem e pedi para filmarem quando eu pegasse a minha mãe.
Ela não sabia de nada, foi no improviso. Uma surpresa para ela também. Peguei na sua mão, a gente foi bem devagarzinho e chorando, como duas malucas. As pessoas em volta, que nem nos conheciam, entenderam aquele momento, se emocionaram junto, nos aplaudiram. A medalha da prova ficou para ela.
Já perdi a conta de quantas corridas fiz desde então. Virou minha válvula de escape. Quando estou triste, vou correr. Quando estou irritada, vou correr. Quando estou feliz, vou correr também. Mas, ainda não completei outra meia maratona. Tentei uma outra vez, em dezembro. Me lesionei e saí de ambulância. Farei outra. Não desisto.
Sei que minha mãe fica feliz quando me vê correndo. Acho que ela pensa que rolou um legado, que a corrida não parou nela. Ninguém nunca deu muita bola para a corrida lá em casa. Mas agora a história é outra. Agarrei a corrida como forma de sobrevivência e com muito amor.
Penso que esta se tornou uma maneira de estar próxima da minha mãe todos dos dias, mesmo não morando na mesma cidade. E é isso que eu faço diariamente. Fico com ela por uma hora pelo menos todos os dias. É sagrado.
Nunca esqueci a frase do médico dela quando o quadro se acalmou: “Sua mãe não morreu por dois motivos. Um porque ela é corredora. E dois porque ela é mãe. Não ia deixar três filhos para trás, não ia deixar de ir na sua formatura e na dos seus irmãos. Ela irá”
É o que sempre falo para ela e virou um mantra: “Mãe, a gente ainda vai correr juntas”.”
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