
Episódios de atletas que passam mal em corridas de rua têm chamado a atenção. Na Maratona do Rio, a maior da América Latina, disputada há duas semanas, por exemplo, o número de atendimentos no hospital de campanha foi 40% maior do que na edição de 2024. Além disso, embora raras, há situações limite que chegam a óbito. Em um mesmo final de semana em junho foram noticiadas duas mortes durante corridas no Brasil. Com o boom do esporte, questões sobre a preparação física adequada e os cuidados com a saúde ganham espaço.
Algumas maratonas ao redor do mundo, como as majors em Boston, Londres, Berlim, Chicago, Nova Iorque e Tóquio, exigem algum tipo de atestado médico para comprovar que o participante está apto a correr a prova.
O tema, no entanto, é controverso: esta seria mais uma burocracia? Promover uma cultura de prevenção e acompanhamento da saúde seria uma alternativa?
Thadeus Kassabian, diretor da Yescom, organizadora da Meia Maratona do Rio, Maratona de São Paulo e Volta da Pampulha, contou que implementará um novo formato de controle de saúde em suas corridas. A começar pela Meia Maratona do Rio, em 17 de agosto.
Os corredores receberão por e-mail uma declaração específica sobre saúde, em que deverão atestar que estão treinados para a distância escolhida, saudáveis e que não repassarão o número de peito para terceiros.
Em um segundo momento, ainda com detalhes a definir, os corredores terão de anexar de forma online uma declaração de saúde atestada por um profissional da área no ato da inscrição.
Thadeus explica que atualmente o corredor assina um termo de responsabilidade, declarando que goza de boa saúde, quando vai se inscrever. Mas, afirma que se trata de um documento “genérico” que abrange outros assuntos como direito de imagem. Ao exigir uma declaração de saúde, algo “específico sobre saúde” e assinada por um médico, o rigor será maior.
— Eu sou a favor de um controle melhor, de mais rigor. E falo de todos os lados. Do lado do atleta, que precisa ter a documentação correta, mas também do organizador que precisa de todas as permissões — declara ele. — Cada um tem de fazer a sua parte, na verdade. A organização é obrigada a oferecer e explicar como será o serviço de saúde nas corridas. As federações de atletismo têm a função de fiscalização. E o corredor tem de estar apto para a distância escolhida. O problema é há furos de todos os lados.
Thadeus, há mais de 30 anos na área, também critica os organizadores de prova de rua:
— Os processos de atendimento médico nas corridas de rua mudaram muito. Enquanto organização técnica, as empresas têm obrigação de acompanhar essa evolução. Em um passado não muito distante, uma ambulância atendia o evento. Hoje, existem regras da confederação brasileira e da internacional. E uma parte das empresas não cumpre, economiza no serviço como um todo. Inclusive empresas credenciadas e que se dizem preparadas.
Pedro Pereira, gerente de produto da Maratona do Rio e do Desafio da Ponte, organizados pela Dream Factory e Spiridon, disse que não há ainda um entendimento se estes eventos cobrarão atestados de saúde de seus corredores.
O hospital de campanha da Maratona do Rio em 2025 teve aumento de 40% nos atendimentos; o evento cresceu 35% em número de corredores. Entre os casos principais destacam-se hiponatremia, hipotermia, hipertermia e desidratação. Não houve óbito.
— A gente precisa estar sempre atento às boas práticas e entender o que realmente funciona. Ainda é cedo para cravar o que vamos fazer daqui pra frente, mas o que já sabemos — e sempre incentivamos — é o preparo, o cuidado e o acompanhamento com profissionais de saúde. A prática esportiva é um dos caminhos mais poderosos para uma vida saudável. Os benefícios são incomparavelmente maiores do que os riscos, principalmente quando o atleta está treinado, bem orientado e faz o acompanhamento adequado com profissionais da saúde.
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Para Claudio Romano, vice-presidente de marketing e negócios da Dream Factory, o corredor precisa ter conscientização de sua condição física e de preparação para uma prova. E como organizador de eventos, acredita que a comunicação pode ser intensificada.
— O cuidado com a saúde é extremamente importante e muita gente vai para a primeira prova, seja qual for, sem estar preparada, sem assessoria ou treinador, sem ter feito um check-up. É preciso ter mais conscientização também. Hoje todo mundo quer correr, mas é preciso se preocupar com o seu corpo.
Autocuidado
O cardiologista Luiz Ritt, da Sociedade Brasileira de Cardiologia, faz o mesmo alerta. Observa que “tem gente que chegou ontem (no esporte) e quer correr maratona”. E que é preciso ter acompanhamento de treino, um programa gradual de intensidade e volume.
Ele diz que, segundo trabalhos internacionais, não houve aumento percentual de ocorrências de óbito em eventos de corrida e que a estatística se mantém em torno de um óbito a cada 100 mil participantes (âmbito mundial). Mas que há aumento no número total, uma vez que aumentou a quantidade de pessoas que se desafiam em provas mais longas e intensas.
— Se tem mais gente exposta, em termos de números, tem mais casos. Mas é bom deixar claro que esses são eventos raros. O que mata é o sedentarismo — diz ele.
Apesar disso, é fato que o treino e a corrida de longa distância causam alterações metabólicas e fisiológicas no organismo. Se não estiver preparado, o corpo pode sofrer consequências sérias. O ponto-chave é evoluir aos poucos.
Para o cardiologista Mateus Freitas Teixeira, da Sociedade de Medicina do Exercício do Esporte do Rio de Janeiro e de Esportes Olímpicos do Vasco, o que tem acontecido é que as pessoas, empolgadas com exemplos da internet, acreditam que “basta colocar o tênis no pé e sair correndo”. Ele também afirma que é preciso planejamento e autocuidado.
— Comprei um tênis tal, uma camiseta tal. Será que eu fui ao médico? — provoca Mateus. — Os corredores precisam ter melhor noção de autocuidado. Não dá para ver na internet e achar que é só comprar tênis de placa e a roupa da fulana. Corrida de rua é atletismo, é um esporte e para praticá-lo, é preciso treinamento, progressão de carga, acompanhamento, etc.
Mal súbito
Ele explica que qualquer pessoa, independentemente de uma condição pré-existente, pode ter um mal súbito durante a prática da corrida. E pode ocorrer em provas de curta ou longa distância, depende do volume e intensidade.
Outro estudo sobre corridas de rua, publicado no New England Journal of Medicine, analisou 10,9 milhões de corredores de 2000 a 2010 e apontou uma parada cardíaca para cada 184 mil participantes. Do total de 59 casos, 71% foram fatais, o que equivale a 1 morte a cada 259 mil atletas.
— Pode acontecer quando se tem, por exemplo, uma alteração hidroeletrolítica muito importante (desequilíbrio no corpo entre água e eletrólitos), estar muito desidratado, entre outros fatores. Claro que quando se tem uma condição de doença cardíaca ou genética isso se potencializa (as chances) — afirma Mateus.
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Luiz acrescenta que, a maioria dos eventos de morte súbita ocorrem no último 1/3 de prova, quando o indivíduo já está em exaustão plena. Cita que além dos casos de doença diagnosticada, histórico familiar de cardiopatias, indivíduos com mais de 35 anos devem redobrar a atenção já que estão sujeitos a condição adquirida de obstrução das artérias do coração.
Lembrou ainda do caso do jogador do Fluminense, Ganso, que teve detectada uma miocardite, que é a inflamação do músculo cardíaco por um vírus. Neste caso, é preciso tratar a inflamação antes de voltar ao exercício físico. Correr nestas condições também pode ser perigoso.
Acrescentou ainda que há os casos de indivíduos saudáveis que usam substâncias para performance. Principalmente os pré-treinos, cafeína em excesso, hormônios como testosterona, chips de beleza e outros. Estes também se colocam em maior risco de eventos cardíacos.
Para não dar chance ao azar, os especialistas recomendam que, quem quer se desafiar, deve fazer uma avaliação médica, um eletrocardiograma no mínimo, e deve ter um profissional de Educação Física para orientação adequada de treinamento e progressão de volume e intensidade.
— Quem exagera, não desfruta do melhor ganho no final do dia: a saúde. Ninguém coloca um paraquedas e sai saltando por aí sem supervisão ou curso preparatório — compara Luiz.
Mateus lembra também que preciso ter um planejamento de prova. O ideal é monitorar a frequência cardíaca, se hidratar sem exagero e pensar nos sinais do corpo: sentiu tontura extrema, sensação de desmaio, falta de ar desproporcional, palpitação tem de parar imediatamente.
— Estar preparado, não é só treinado do ponto de vista muscular. É preciso também ter um planejamento de prova. Ou seja, saber a quantidade de água a beber durante a prova, em que fase da corrida consumir os carboidratos e etc. Com isso, se evita muitas questões importantes.
Discussão
A Abraceo (Associação dos Organizadores de Corrida de Rua e Esportes Outdoor), a Confederação Brasileira de Atletismo (CBAt), a Sociedade Brasileira de Medicina do Exercício e do Esporte (SBMEE), a Sociedade Brasileira de Cardiologia e a Associação dos Treinadores de Corridas de Rua (ATC) estão elaborando uma campanha de autocuidado, a Corrida Segura, a ser lançada principalmente nas redes sociais.
O objetivo é incentivar, informar e sensibilizar os participantes de corridas de rua e o público de eventos outdoor sobre a importância do cuidado com a saúde. Em um primeiro momento, a campanha será educacional e informativa. Em uma fase mais à frente, pensam em incluir a avaliação médica anual como recomendação e/ou obrigação como norma da CBAt (que homologa corridas de rua e ultramaratonas).
No Brasil, segundo Guilherme Celso, presidente da Abraceo, não há essa obrigatoriedade. Mas corridas de trail e ultramaratonas costumam exigir algum tipo de documento, tanto no país como no exterior. Observa que a exigência de um atestado de saúde, na sua opinião pessoal, criaria barreiras para uma grande parte da população que hoje estão evitando outros problemas de saúde.
— Considerando o universo gigantesco de eventos realizados no Brasil, posso afirmar com total responsabilidade que essas ocorrências são casos absolutamente isolados. Até agora, foram 10 mortes registradas em um ano que já soma milhares de provas e centenas de milhares de participantes (um dos casos foi por atropelamento, em Manaus). É um número extremamente pequeno quando comparado à dimensão do movimento da corrida no país — afirma Guilherme sobre os casos de 2025. — A maioria dos casos de mal súbito em corridas ocorre sem qualquer sintoma prévio, e mesmo com exames recentes, é impossível garantir que um atleta não venha a sofrer um evento cardiovascular. O atestado médico tradicional, que geralmente é genérico e sem profundidade técnica, acaba tendo um efeito mais simbólico do que preventivo.
Ele diz que, pessoalmente, acredita que o autocuidado e a educação são a saída mais eficaz. Afirma que a medicina esportiva tem defendido, com base em dados e evidências, que o mais importante é o atleta conhecer o próprio corpo e realizar exames periódicos.
— A gente vê uma romantização do esforço. O aleta, mesmo doente, gripado, vai para a corrida para mostrar que consegue — opina Guilherme, para quem é fundamental que os eventos estejam bem estruturados para casos de emergência.
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